segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Monte Shyaka - O Inferno Branco

Depois de uma ótima noite de sono, resultado do cansado da escalada do dia anterior, levantei bem disposto e sai para fora de casa para avaliar as condições climáticas. Uma das vantagens de viver em frente a um grande arrozal é que sem construções temos uma ampla paisagem, e a minha por sorte da de frente com as Montanhas de Suzuka. Nuvens escuras pairavam sobre as montanhas e alguns flocos de neve ainda chegavam com o forte vento, porém acima de minha cabeça o céu azul anunciava um belo dia.

Consultei também as previsões do tempo via internet que indicavam um dia aberto, frio e com muito vento. Apesar de o clima em montanhas ser muito instável, com essas previsões estava claro que durante o dia não haveria nevasca. Consultei o Lord se realmente manteríamos os planos, afinal haveria muita neve por lá, ele estava doido para encarar uma montanha nevada e por isso ignorou qualquer consideração que eu fizesse. Então partimos para a montanha sem ao menos saber se conseguiríamos chegar até lá, uma vez que havia neve na pista até na cidade.

Conforme fomos nos aproximando das montanhas a visibilidade melhorou e pudemos avistar diversos picos cobertos de neve desde a base, a pista estava melhor do que podíamos imaginar e sem problemas chegamos a base para começar a subir o trecho mais critico. A pista possuía apenas o espaço de um carro com pouca neve e em meio a patinadas avançamos para o nosso destino, de repente a pista acabou e tudo virou neve, por conta disso tivemos que voltar uns 100 metros para deixar o carro em um local seguro.

Preparamos as mochilas e começamos a subir pela pista até a entrada da trilha, esse trecho é muito confuso, tem chalés, camping e pequenos comércios, tudo fechado durante o inverno. Uma grande placa com um mapa e uma caixa postal ao lado indicavam a entrada da trilha, porém com tanta neve ficava difícil saber pra onde seguir, Lord havia estado ali 15 dias antes com uma turma e eles acabaram errando a entrada e se perdendo, porém com a montanha naquelas condições não podíamos nos dar a esse luxo.

Visualizando uma ladeira que se encontrava na minha frente disse, vamos seguir por aqui, Lord achou uma loucura mas acabou concordando, subiríamos um pouco e se não achássemos o caminho voltaríamos. Iniciamos a subida com neve até nas coxas, romper aquilo em um trecho íngreme como aquele logo nos deixou cansados, pelo caminho achamos uma construção, mas nenhuma trilha que rumasse montanha acima, começamos a descer lateralmente e acabamos voltando em nosso ponto inicial.

Lord indicou que da outra vez que estivera ali eles seguiram mais para cima, então seguindo o raciocínio de que eles haviam errado a entrada sugeri que seguíssemos para baixo, descemos um pouco e lá estava a minúscula placa quase coberta de neve indicando a entrada. Seguimos com neve até o meio das canelas por uma via larga por onde passaria um caminhão, realmente haviam alguns parados mais a frente em uma obra de barragem, atravessamos um riacho e seguimos floresta a dentro.

O Monte Shyaka ou Shyakagatake em japonês, tem quase 1100 metros e é dentre as 7 Montanhas de Suzuka a menos visitada, o acesso não é ruim, porém está em uma região pouco movimentada e possui poucas rotas até o cume. Na rota escolhida seguiríamos por um vale até alcançarmos uma cascata e rumar para o topo, atravessando uma crista e iniciando a descida dando a volta pelo outro lado até retornarmos ao ponto inicial.

Seguindo pelo vale foi sempre aquele zig-zag e sobe e desce, romper a neve virgem que no início era divertido aos poucos foi se tornando estressante, por mais esforço que fizéssemos a subida parecia não evoluir e isso começou a me deixar desanimado. Caminhávamos as cegas por um caminho cheio de pedras e buracos, depois de mais de 2 horas conseguimos alcançar a Cascata Anza, que possui 40 metros de altura, porém parcialmente congelada não exibia toda a beleza que eu já havia constatado em fotos e vídeos.

Continuamos em frente e Lord sugeriu que pegássemos um desvio que levaria para outra rota alcançando a crista, nesse momento eu já estava muito cansado, olhei para aquela subida e tomei a decisão de seguirmos direto para o cume pois já havíamos perdido muito tempo até ali. Escalamos trechos difíceis com muita neve fofa e as cordas no local nos ajudaram e muito, nesse momento ganhamos altitude rápido e já podíamos visualizar o cume, até que chegamos em um paredão.

A partir daquele ponto tivemos que cramponar, enquanto estávamos sentados colocando os acessórios nos pés pensei em abortar a subida, o vento era assustador e a neve havia se tornado tipo sugar powder, comemos um onigiri, bolinho de arroz japonês, e propus ao Lord que seguíssemos ao cume e atravessássemos a crista sem parar para descansar ou comer, afinal estávamos a mais de 900 metros de altitude e uma névoa havia se formado, congelando qualquer coisa que ficasse inerte. Eu estava torcendo para que ele discordasse da minha ideia e assim seria o fim da linha, porém ele concordou e seguimos em frente.

Iniciamos aquele trecho muito vertical tomando o máximo de cuidado, aquela pequena parada havia me feito bem e procurei subir em um ritmo forte para chegar logo lá em cima, porém no meio dessa subida meu gás foi novamente se esgotando e iniciando um terrível sofrimento. Naquele trecho qualquer descuido seria fatal, agarrado a uma corda olhei para baixo, Lord vinha escalando também com grande dificuldade e pude perceber que naquele momento não haveria mais volta e teríamos que nos esforçar no limite.

Alcançamos o topo sabe-se lá como, creio que os Deuses da montanha deram um empurrão. Chegamos ao ponto mais alto que possui 1097 metros e atravessamos a perigosa crista até chegar no ponto que marca o cume a 1092 metros. Estávamos esgotados mas não havia como parar ali, as luvas estavam duras de gelo, o rosto também começou a formar gelo nas sobrancelhas e cílios, o que incomodava bastante, a temperatura era de -8 graus e um vento de 60 km/h, então imediatamente iniciamos a descida.

Imaginávamos pegar menos neve no caminho de volta, porém continuamos atolando na neve fofa e agora ainda tínhamos o forte vento que soprava na crista desprotegida. Comecei a imaginar se teria forças para voltar e me senti como um himalaísta, os pés já não obedeciam mais, na mão direita o bastão frouxo denunciava que não servia mais de apoio nenhum, cabisbaixo começamos um trecho de descida e quando eu olho pra frente vejo um enorme pico que a esta altura parecia gigante.

Lord me indicou que esse era o Monte Neko, então não haveria escapatória, teríamos que escalar ele e ainda encarar mais dois picos que viriam na sequencia. Começamos a subir e desesperado observei se não havia algum lugar para parar ao meu redor, mas não havia, então pedi para o Lord tomar a frente, ele o fez e tentou me apoiar dizendo que vencendo essa subida tudo seria mais fácil, mas infelizmente o meu corpo não respondia e assim como um bêbado chega em casa sem se lembrar como, eu cheguei ao topo dessa montanha.

O sol começava a baixar e passamos a acelerar a passada na descida, mais uma subida em um pico que nem recordo o nome e continuamos descendo até alcançar o Pico Hato. Ainda faltava muito, mas ter chegado ao fim daquela crista nos dava uma sensação de vitória, até paramos e sentamos uns 2 minutos no pico rochoso, presenciar rochas sem neve parecia um alívio e o pior já havia passado, porém a iluminação natural agora era nossa inimiga.

Retomamos a descida por uma canaleta que levaria a um vale, os crampons que tanto nos ajudaram agora começaram a atrapalhar, paramos para tirá-los e na sequencia não parávamos de pé. Comecei a me atirar de bunda para agilizar a descida, algo que não foi muito agradável devido ao solo rochoso e irregular. Chegamos no vale e novamente me lembrei do Himalaia, a trilha cruzava um riacho e tivemos que nos arremessar como se estivéssemos pulando uma greta, era isso ou encarar a água gelada.

A trilha passou a ter pegadas humanas, provavelmente alguém passeou por ali sem adentrar a montanha, começamos a segui-las sem prestar muita atenção no caminho, até que uma hora misteriosamente as pegadas sumiram. Sem ter prestado atenção no caminho ficava difícil determinar pra onde ir, Lord indicou algumas pegadas, mas provavelmente eram de macacos, então escolhemos uma direção e continuamos descendo onde logo encontramos o caminho de saída da trilha.

Já sem sol algum, minhas mãos começaram a congelar, então comecei a perceber o sentido de ser derrotado pelo frio. Você não perde para o frio somente por ter passado frio, ele nos fez não parar pra descansar, não parar para comer, fez nossas bebidas ficarem dentro da mochila para não congelar, e depois sem descansar nem comer a exaustão chega e até tirar uma garrafa de água da mochila parece ser um esforço além do possível, aí vem a desidratação, bom aí o frio já te venceu e pronto.

Depois de levar alguns escorregões andando pelo asfalto congelado alcançamos nosso carro, arremessei minhas coisas no porta malas e tomei a direção, Lord ainda demorou um pouco para adentrar no veículo e quando o fez o nosso humor parecia não querer comemorar coisa alguma, estávamos exaustos, sujos e famintos, andamos um tempo em silêncio até que começamos a fazer comentários e dar algumas risadas, como conseguimos vencer aquele paredão? Acho que não tem resposta, mas tenho certeza que se fosse um exame, teríamos passado de nível.



Ps.: Durante a noite eu não consegui dormir e tive um pouco de febre, o Lord ficou com febre por 3 dias e não quer ver uma montanha nevada tão cedo.


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sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Monte Nyudo e os Deuses da Montanha


Um novo ano se inicia e pela tradição japonesa todas as pessoas devem se dirigir ao Jinja, Santuário Xintoísta, para agradecer pelo ano que passou e pedir proteção para o ano que se inicia. Para os montanhistas japoneses a regra não é diferente e proteção principalmente nas escaladas é o que todos almejam, e nada melhor do que visitar um Santuário em uma montanha e finalizar escalando ela.

O Suzuhai planejou um hiking na neve partindo do Grande Santuário de Tsubaki até o topo do Monte Nyudo, ou Nyudogatake em japonês. Durante a semana o tempo não ajudou com uma frente vinda do sul e 3 dias de chuvas, isso foi suficiente para acabar com a neve de inicio de inverno, pois a montanha tem apenas 906 metros de altitude. Nos últimos dias que antecederam a escalada esfriou novamente e aumentou a expectativa de uma nova nevada que não veio e frustrou a maioria dos participantes.

No dia programado partimos eu e Lord da cidade de Suzuka rumo ao Santuário, no local encontraríamos mais 8 pessoas que viriam de outras regiões. O nosso tempo estava com folga, porém há 1 km do estacionamento pegamos um congestionamento monstruoso que transformou um trajeto de 3 minutos para quase 1 hora. Meu celular já recebia um bombardeio de mensagens até que quando paramos o carro ele tocou e deu a notícia, aguardem mais 5 minutos, que se tornariam 10 até que ajeitássemos as coisas na mochila.

Ao chegarmos no local marcado encontramos todos ansiosos e sem mais perda de tempo partimos para a entrada da trilha. Nesse caminho, Lord que debutava no grupo comentou que uma das mulheres não parecia bem, era Nao e com tranqüilidade respondi que ela era muito mais forte do que nós dois, até que ela se aproximou de mim para desejar "feliz ano novo" e percebi que ela estava completamente embriagada.

Na entrada da trilha a tradicional auto apresentação dos participantes e iniciamos a escalada.
A rota escolhida para subida já era conhecida por mim, logo no inicio uma escadaria de pedras de fazer qualquer um perder o fôlego, depois desse trecho muitos já imaginam o que teriam que enfrentar pelo caminho, Lord já fez a sua primeira queixa de cansaço, enquanto que Nao praticamente se arrastou escada acima pedindo para que os outros passassem, porém recebeu o apoio do grupo para completar o trecho que logo de cara deve ser o mais difícil da montanha.

Na medida que fomos subindo em meio a floresta o corpo foi esquentando cada vez mais e todos foram eliminando camadas de roupas, com a temperatura não passando de 5 graus negativos, quem estava com jaqueta de plumas começou a cozinhar, Lord era um desses e pingando de suor ele acabou seguindo com uma jaqueta mais fina que eu havia levado de reserva, as vezes parece exagero tanta coisa que levo na mochila, porém sempre pode ser útil.

Sem pausas para descanso, quem seguiu no pelotão da frente pode descansar enquanto aguardavam os demais, na rabeira de traz Nao trançava as pernas como eu nunca vira antes, sempre sendo amparada pelo líder Taro, que lhe deu atenção durante toda a subida. Um pouco mais a frente eu acompanhava Lord, que muito cansado tinha dificuldade até para se queixar da subida. Procurei manter aquele ritmo me poupando para o dia seguinte quando eu e Lord escalaríamos outra montanha, e por um momento comecei achar que seria improvável que ele fosse suportar uma montanha mais alta e de dificuldade muito maior.

Continuamos sem parar rumando para cima, o problema desta rota é que durante 90% do percurso se enfrenta somente subida, o que acaba exigindo um grande esforço físico. Cansados porém inteiros alcançamos o topo da montanha com uma bela vista dos montes Kama e Gozaisho com seus cumes congelados, do outro lado no horizonte que não parecia tão próximo estava o ponto mais alto que ainda teríamos que enfrentar.

Sobre um forte vento desviamos o caminho para o cume até chegar em um pequeno santuário, onde fizemos os agradecimentos e pedimos proteção. Paramos para o almoço ali mesmo, pois alguns blocos de tijolo ajudaram a sustentar os fogareiros, fiquei imaginando então quem é que carrega essas coisas até ali, ou seria obra de alienígenas. Aproveitei pra testar o meu poderoso fogareiro ching-ling, que não decepcionou no preparo do nosso cup lamen, aliás algumas pessoas com fogareiros melhores demoraram mais pra esquentar a água do que a minha baraterrima réplica.

Apesar da comida quente, ficar parado fez o corpo esfriar bem, minha mão direita começou a congelar sem luva, impossível comer de hashi, talheres japoneses, usando uma luva. Alimentados seguimos para o cume onde soprava um forte vento, fizemos uma foto juntos e muitos já correram do local para se proteger da tormenta, abri os braços para pose de uma foto e quase caí pra tráz, com o tempo nublado uma neve fina começou a correr pela montanha anunciando o que viria depois.


Iniciamos a descida por outra rota e mais parecia uma competição pra ver quer chegava primeiro lá embaixo, nesse corre corre o corpo esquentou até na descida, até que chegamos em um pequeno abrigo onde uma parada já era programada. No local Taro preparou um zenzai, um prato doce aqui do Japão, que leva como ingredientes feijão azuki e mochi, uma espécie de bolinho de arroz socado. Tomei duas canecas dessa iguaria e apesar de gostar, confesso que não agrada muito o paladar dos brasileiros.

Continuamos a descida e Nao que até havia tirado um cochilo no abrigo novamente ficou pra traz, perdemos altitude muito rápido e logo o terreno foi se tornando mais plano, o que anunciava o fim da jornada. Quando retornamos ao Grande Santuário de Tsubaki, uma multidão formava filas para chegar ao complexo principal e nossa passagem ali foi abortada, então nos reunimos para as considerações finais e separadamente seguimos pra casa.

No retorno para casa pudemos observar que o trafego de veículos em direção ao Santuário havia triplicado em relação a quando chegamos, no sentido contrario seguimos livre e pudemos discutir os planos de escalada para o dia seguinte, estávamos cansados porém inteiros e parecia não haver nenhum problema. Mais tarde começou a cair uma neve que duraria a noite toda e mal podíamos imaginar o que se sucederia.


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